Sinto o cheiro da sala e o barulho da televisão que noticia o cotidiano do estado vizinho. Mais alguns passos e me deparo com o espelho que por tantas vezes me viu arrumar os cabelos e amarrar a canga na cintura e, quando me viro de costas, involuntariamente, espero te ver deitado na cama que um dia eu chamei de “nossa”.
Reviver cada momento da etapa que certamente dividiu a minha vida em antes e depois de você, não foi nada fácil por um simples e estrondoso motivo: sua ausência. Digo simples porque não tenho mais justificativa alguma para a minha decadência repentina de humor enquanto me desloco da varanda em direção à piscina, a não ser a falta do seu peito sem camisa, ou seus pés à minha vista calçando chinelos de dedo. Estrondosa, pois mesmo estando tão longe, minha cabeça puxava como um ímã o timbre da sua voz que agora me tortura por não mais tê-la mesmo que fosse para ouvir seu tom nas brincadeiras, que era quase sempre agressivo, rude e sem um pingo de doçura.
Volto no tempo em meu mundo criado a partir de você e me isolo no conforto que as memórias suavemente infernais me trazem e que eu me lembro como se estivessem acontecendo hoje, já que diariamente – e sozinha – me recordo dessa espécie de paraíso que você me deu. Ver seus olhos descansados e poder te fazer relaxar, massagear suas costas e, acariciar seus cabelos mostrava a forma mais sensível com a qual eu retribuía os seus cuidados com a minha distração e tão notável inexperiência. Acordar imóvel por seus braços, era a maneira mais linda de começar o dia que já havia dado os cumprimentos há horas, mas, deixa o relógio despertar, o sol se pôr e a lua cair; não tinha com o que me preocupar se minha única preocupação estava ao meu lado, visivelmente em paz e se incomodava apenas com a luz do sol que naquele momento invadia o quarto pela fresta da janela sem nos pedir permissão.
Conheço de você uma pessoa que tira todas as palavras que meu vocabulário conhece só para me deixar sempre assim, a mercê de seus pensamentos e interesses, mesmo que os meus fossem (e sempre eram) tão contrários aos que me dominavam a cada vez que você abria a boca e cogitava mostrar o sorriso que já me fez e, indiscutivelmente, ainda me faria perder a cabeça com tanta maestria. Seu jeito sempre disposto a ajudar nos serviços braçais, de força e coragem me provam a sua masculinidade quando não se mostra ser só mais um bruta-monte preocupado com os músculos e a fila de menininhas que ainda tem pra pegar e, confirma isso tendo opinião em todos os assuntos que debate, seja para falar da cerveja na sexta, do jogo de futebol no domingo, do vestibular na segunda, ou do trabalho de daqui a alguns anos, sempre com total domínio sobre o que discursa.
Te vejo homem, ainda que discordem de mim, e é essa a imagem que fica apesar de todos os martírios que passei enquanto lutava desesperadamente por você, sendo que na maioria das vezes, estava sem qualquer tipo de instrução que me guiasse para o caminho certo até seu coração. Compreendo que me precipitei, me perdi, buscava tanto por um erro seu que me pusesse em vantagem na nossa história, que acabava sempre por derrubar um balde de água fria em qualquer pedacinho que pudesse colar essa peça de porcelana – tamanha delicadeza da nossa situação – que um dia fomos, ao te ver jogando na minha cara sua compreensão tão clara e objetiva de tudo que eu nunca consegui entender: seus pensamentos.
Sim, no passado, fomos. Não mais presente, quem sabe, futuro. Te espero hoje assim como ontem, mas não como antes e, mesmo se não voltar, terá sempre seu espaço reservado em meu coração, que hoje está em paz, consciente e conformado da calamidade que não pôde ser evitada. Deixo as águas correrem, os anos passarem, as idéias amadurecerem, e os verdadeiros sentimentos aflorarem, pois sei que de alguma forma, representei algo para você. Só te peço que não duvide. Mesmo que não acredite, jamais ouse duvidar de cada palavra que eu tive a coragem de te dizer nos meus momentos mais fracos, quando eu deixei de lado todo e qualquer orgulho que ainda me restasse para te mostrar da maneira mais sincera que o que eu digo, é o que sinto, ainda que em solidão, e sem nenhum motivo que me estimule a seguir adiante nesse oceano que me encorajei em navegar, do qual você mal conhece uma gota, mas que persisto com algum intuito que só o tempo poderá me fazer descobrir qual é.

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